Cenários Transformadores para a Educação Básica no Brasil 2032
Uma contribuição para o debate público
Panorama
A Constituição de 1988 significou uma grande mudança no quadro legal da política educacional brasileira. Pela primeira vez na história do país, a educação tornou-se efetivamente um direito, de modo que caberia ao Estado garantir, de forma obrigatória, o ensino das crianças de 7 a 14 anos. O país, desde a independência, nunca conseguiu colocar a educação no centro da agenda pública.
Esse atraso secular, mais evidente quando comparado a nações desenvolvidas e mesmo a vizinhos latino-americanos, dimensiona o tamanho do desafio que o Brasil enfrentou nas últimas duas décadas e meia. Diversos atores sociais e governamentais mobilizaram-se pelo direito à educação e muitas transformações ocorreram. A situação atual demonstra a enorme ampliação da política educacional nesse período, criando um dos maiores e mais complexos sistemas de ensino do mundo.
Em 2013, havia aproximadamente 50 milhões de estudantes matriculados na Educação Básica no Brasil, incluindo os alunos do ensino regular, da Educação de Jovens e Adultos e da Educação Especial, de acordo com o Censo Escolar (Inep/MEC). A rede pública é responsável por mais de 80% dessas matrículas, principalmente no âmbito municipal. Na Educação Básica, esses alunos estudam em cerca de 200 mil estabelecimentos, com mais de 2 milhões de docentes.
No contexto desafiante pós-aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014–2024, o desenvolvimento do projeto Cenários Transformadores para a Educação Básica no Brasil se constituiu em um exercício coletivo de análise da conjuntura e de construção de possíveis futuros para a Educação Básica brasileira nos próximos 17 anos. Esse exercício teve como base o diálogo entre diferentes perspectivas políticas, muitas das quais estiveram em conflito no processo de tramitação do Plano Nacional de Educação no Congresso Nacional.
Tendo como base o direito à educação, o diálogo entre perspectivas diferentes – e muitas vezes conflitantes – não teve explicitamente como objetivo final a construção negociada de um pacto ou de uma agenda de ação comum entre os participantes. Muito pelo contrário, o desenvolvimento dos Cenários para a Educação Básica se constituiu em um espaço de encontro e de escuta ativa que não pretendeu em nenhum momento amortecer ou esvaziar conflitos e diferenças.
Histórico
O Instituto Reos convocou o projeto com mais 6 atores-chave do campo de educação no Brasil: Ação Educativa, Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, Consed, GIFE, Todos Pela Educação e Undime. O projeto recebeu apoio financeiro de 5 entidades: Instituto C&A, Fundação Telefônica Vivo, Fundação Itaú Social, Instituto Unibanco e Ação Educativa.
O processo teve início em 2014 com o mapeamento multisetorial de um grupo diverso de atores do campo da educação do Brasil: organizações da sociedade civil, movimentos sociais, governo, organizações internacionais, formadores de opinião, institutos e fundações empresariais, sindicatos, professores, diretores, pais, estudantes e acadêmicos.
A partir deste mapeamento, 71 líderes no campo foram entrevistados e 41 convidados a compor a equipe de cenários, equipe responsável pela construção dos cenários –– que se reuniu em três oficinas de construção para pensarem juntos o futuro da Educação Básica no Brasil. Eles construíram e escolheram histórias sobre o futuro da Educação Básica no Brasil que acreditaram ser relevantes, desafiadoras, plausíveis e claras, contribuindo para o debate público sobre o tema.
Desafios
Apesar dos avanços, as conquistas ainda estão longe das metas e distantes de um cenário ideal. Com relação ao fluxo, por exemplo, mesmo com a queda nos anos recentes, as taxas de evasão ainda são bastante elevadas nos anos finais do Ensino Fundamental e, principalmente, no Ensino Médio. Ainda há, de acordo com o Observatório do PNE, cerca de 2,9 milhões de crianças e jovens de 4 a 17 anos fora da escola – desse total, cerca de 1,6 milhão são jovens de 15 a 17 anos que deveriam estar no Ensino Médio.
Se do ponto de vista da cobertura escolar, mesmo com problemas, o Brasil teve avanços inegáveis, em relação à qualidade do ensino os indicadores de desempenho dos alunos não têm tido melhoras significativas, resultando numa situação de quase estagnação num baixo patamar de desempenho.
Esses desafios, tanto relativos à universalização quanto à qualidade, afetam principalmente a parcela mais carente da sociedade: os mais pobres, os negros e os indígenas, a população do campo e as crianças com deficiência. É fundamental que a busca da melhoria do ensino leve em conta o princípio da equidade, pois a desigualdade educacional é um legado histórico e ainda uma marca do país. Desse modo, inclusão e qualidade devem andar juntas no campo da educação.
Os cenários
Canário-da-Terra No cenário Canário-da-Terra, o sistema educacional brasileiro passa por mudanças importantes. Quase todas as metas do PNE (2014–2024) são cumpridas, graças à atuação do Estado, cobrado e pressionado pela sociedade civil. Essa interação contribui para avanços na educação pública. A cultura de descontinuidade das políticas educacionais é rompida, tendo como centralidade o cumprimento do PNE. O Estado tem um papel fundamental e estratégico na garantia do direito à educação, e a concepção de educação é ancorada nas políticas públicas oficiais e formais, pautadas nas leis e construídas e negociadas com a participação da sociedade civil. Ainda que o Estado seja o responsável pela oferta da educação, há espaço para outras iniciativas, mas são estabelecidos parâmetros claros para determinar a relação entre o público e o privado na educação, considerando a regulação da iniciativa privada. Isso ocorre porque a comunidade escolar, a comunidade educacional e a sociedade exigem a priorização da educação: há uma participação e um controle social forte das políticas públicas. A gestão da escola é democrática e os planos de educação são construídos, acompanhados, monitorados e aperfeiçoados de forma participativa, por meio dos fóruns de educação e das conferências. A escola, em formato tradicional, mas com algumas experiências inovadoras, tem a função de democratizar o acesso ao conhecimento e garantir a apropriação da cultura. As desigualdades educacionais diminuem sensivelmente, mas não há uma superação da discriminação e do preconceito no cotidiano escolar e nas políticas educacionais. A melhora da qualidade da escola pública aumenta a matrícula da classe média nos estabelecimentos construídos e mantidos pelo Estado. O canário-da-terra é o símbolo desse cenário. Ele está em todas as partes do Brasil, esteve ameaçado de extinção, mas está retomando seu terreno. Acostumado a viver em bandos, preocupa-se com o coletivo, tem espírito de luta ao brigar por espaço, é territorial e possui uma técnica eficiente de alimentação, não dispersora de sementes. | Beija-Flor No cenário Beija-Flor, reformas profundas estão sendo realizadas no sistema de educação, com base em experiências bem-sucedidas no país e no exterior, motivadas por mudanças sociais, tecnológicas e ambientais. A renovação da educação parte de experiências desenvolvidas por escolas públicas, organizações e movimentos sociais e outros atores. Há um estímulo à inovação educacional por meio de políticas públicas estatais e não estatais, que abrem espaço para uma educação menos tradicionalmente escolarizada. O Estado é fomentador e indutor, garante as condições do padrão de qualidade previsto na legislação educacional e estimula as escolas a desenvolverem experimentações e a relação com as comunidades. Existe uma pluralidade de arranjos na relação público-privada que privilegia o não lucrativo. Porém, há uma tensão pautada pela necessidade de forte regulação e permanente controle social para que interesses privados contrários aos interesses públicos não dominem as escolas públicas, de empresariais a grupos religiosos fundamentalistas. Há um estímulo à participação e ao controle social de vários sujeitos da comunidade escolar, mas ainda com desafios para que tal participação influencie as políticas nacionais. Valoriza-se a diversidade, mas muitas vezes não se abordam devidamente os conflitos envolvidos na superação de desigualdades, discriminações e privilégios. Convive-se com uma pluralidade de modelos, como redes e comunidades de aprendizagem, territórios de cooperação, cidades-escola e experiências de educação popular. Tal pluralidade se alimenta intensamente da relação com as tecnologias. Apesar de estar ancorada na legislação nacional da educação, a multiplicidade de experiências é tensionada pelo risco da fragmentação, pela dificuldade de gerar avanços em escala e pelo acirramento das desigualdades entre escolas. A concepção de educação é pautada por princípios como equidade, justiça social e promoção da sustentabilidade socioambiental. A escola tem a função social de formar sujeitos de mudanças cotidianas e globais, fortalecendo a relação com os territórios, em uma perspectiva intersetorial e de trabalho em rede. O beija-flor é o símbolo desse cenário. Ele tem uma beleza intensa que transcende a racionalidade mais imediata. É um dos principais agentes polinizadores de várias plantas e explora até mesmo flores de plantas rasteiras, voando muito baixo para tal. É territorial e vocaliza o tempo todo, desde o amanhecer até o pôr do sol. |
Falcão-Peregrino No cenário Falcão-Peregrino, a influência da visão empresarial se consolida, com um aumento significativo do repasse de recursos públicos para instituições privadas (lucrativas e não lucrativas) de ensino, por meio de convênios, parcerias público-privadas e distribuição de bolsas de estudo. O Estado mantém o papel de provedor, regulador, avaliador e financiador, mas abre mão de ser o principal executor das políticas e de se responsabilizar pela oferta educacional. A educação é voltada para a formação de capital humano: mão de obra qualificada e especializada para trabalhar no mercado, e o foco é a proficiência, medida por avaliações externas padronizadas de larga escala. Existem avanços no atendimento quantitativo, mas pouco no qualitativo. Há um currículo único e os materiais educacionais são padronizados. O modelo de gestão é por resultados e por desempenho dos alunos, e o ranqueamento é um conceito forte nesse cenário. Há um enfraquecimento do sistema de participação social. Ele se limita à liberdade de escolha da escola e à exigência pelo serviço: a família e o aluno são tratados como clientes. Há uma resistência empreendida por sindicatos, movimentos sociais, movimentos juvenis e articulações de rede, porém ela é reprimida na opinião pública. A desigualdade diminui para alguns indivíduos e grupos que conseguem romper o ciclo de desigualdade via competição ou mérito. Há investimento nos alunos com melhor desempenho, mas a desigualdade estrutural permanece, podendo crescer. Para os profissionais de educação, a remuneração é variável, com bônus e premiações. A matrícula no setor privado por meio de subsídios e bolsas é ampliada. O falcão-peregrino é o símbolo desse cenário. Atualmente, o falcão-peregrino (falcão-de-peito-laranja, como é chamado no Brasil) é considerado a ave mais veloz do mundo, podendo atingir cerca de 320 km/h. Não é uma espécie ameaçada de extinção, mas é rara em toda a sua grande área de distribuição. É um caçador solitário que ataca outras aves, em geral pombos ou pequenos pássaros, e que possui bicos afiados e garras poderosas adaptadas à captura de presas. Não obstante, também pode ser vítima de outras aves de rapina, dependendo do porte. | Tico-Tico No cenário Tico-Tico, a lógica em voga é o desenvolvimentismo econômico. Ao estimular o consumo como a principal força social agregadora, o Estado consegue promover uma sensação de melhoria no dia a dia das pessoas, mas havendo grandes impactos sociais e ambientais. O resultado é a fragmentação das agendas e da atuação dos movimentos sociais e dos atores políticos e sociais. Há um descontentamento com o serviço público ofertado, que não é capaz de garantir a pauta da qualidade dos direitos. O Estado tem presença, principalmente com a manutenção das políticas sociais compensatórias, e busca a universalização do direito à educação. Contudo, faz isso com baixa vontade política para enfrentar as desigualdades estruturais, o que reproduz padrões desiguais de qualidade. Ele também tem o papel de expandir o acesso e – quando muito – avaliar a educação, porém não consegue ser regulador e tampouco garantir o essencial. Predomina a concepção de escola formal, posta na legislação, com quase nenhuma inovação. A preocupação primordial é a inserção no mercado de trabalho. Há pouca motivação da juventude em relação à concepção educacional em voga, que não sofre grandes alterações. A escola busca ser para todos, mas a qualidade é para poucos. Existe inclusão precária de alguns e exclusão de outros. É uma educação massificada e pouco eficaz, que tenta considerar as diversidades, porém de forma periférica. Existe um aumento da violência, uma influência religiosa conservadora e um questionamento da educação laica. Há, também, uma gestão com ênfase em resultados, combinada com uma institucionalidade participativa, mas com baixa efetividade nas tomadas de decisão. A relação público-privada se estabelece como parceria na oferta de matrículas, na cultura da gestão e venda/oferta de soluções como sistemas de ensino, serviços, livros didáticos e oferta de tecnologias sociais, porém enfrenta resistências. As contradições e impasses nesse cenário dificultam a concretização das mudanças necessárias para que as políticas educacionais continuem avançando. O tico-tico é o símbolo desse cenário. Ele é abundante em regiões de clima temperado e também em cumes altos expostos a ventos frios e fortes. Vive em casais isolados e o macho ataca tico-ticos vizinhos que invadam seu território. Tem uma técnica de esgravatar alimento no solo por meio de pequenos pulos, “ciscando sem sair do lugar”. Pula até quatro vezes consecutivas sem alterar a posição das pernas e esgravata o chão com ambas as patas sincronizadamente, jogando para trás o material impeditivo. |
Resultados
Contribuir para o debate público em espaços institucionalizados e que fortaleçam o impacto do projeto.
Os cenários foram lançados em São Paulo na Sala Cultura Inglesa do Centro Brasileiro Britânico no dia 20 de agosto de 2015 com a presença da equipe de cenários, os financiadores e atores-chave do campo. O primeiro lançamento regional foi em Belém em outubro de 2015 como parte do Seminário Redes, Educação e Transformação Social e em 2016 planejamos conduzir diálogos sobre os cenários em Brasília, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Salvador.
A Equipe de Cenários provocou discussões e reflexões em vários eventos, organizações e redes, sendo eles: encontro de professores na Bahia, encontro de formação da Undime, 12º seminário do CRECE (Conselho de Representantes de Conselhos de Escolas). Na mídia e nas redes sociais os cenários foram mencionados em boletins da Agencia Belém Noticias, Compromisso Campinas pela Educação, Consed, GIFE, Instituto Natura e Porvir. Folhetos dos cenários foram distribuídos para 50 municípios como parte do Projeto Maleta Futura Educação e Desigualdade do Canal Futura.
Diversas outras organizações também estão utilizando os cenários para subsidiar seus planejamentos estratégicos, entre elas as organizações e institutos apoiadores do projeto.
Todo material criado pela Equipe de Cenários, incluindo relatório de cenários, relatório de síntese das entrevistas, apresentação executiva, guia metodológico para uso dos cenários e os vídeos (dos cenários e do processo) está sob a licença do Creative Commons e com livre acesso para download no site do projeto, e até dezembro de 2015 foram realizados mais de 300 downloads.
Os cenários possibilitam a contribuição para o debate público e a inspiração e estimulação de estratégias e ações na Educação Básica. Atualmente, estamos em fase de divulgação. Confira nossa agenda para 2016 e participe.